Paulo Leminski dizia que a pessoa que não escreve um verso, mas não consegue dormir sem ler umas páginas de Fernando Pessoa ou outro poeta de sua preferência, é tão poeta quanto quem escreve. Muita gente desiste da poesia às vezes pela forma como ela é enfiada goela abaixo, sobretudo nas escolas, sendo associada, no imaginário popular (preconceituoso), quase sempre a professores/as chatos/as, por detrás de grossas lentes, isso sem falar na “utilidade” da poesia.

Mas poesia pode ser outra coisa, poesia deve ser outra coisa, poesia precisa ser outra coisa. Um bom exemplo é o Baião de Spokens, idealizado e capitaneado pelo ator e poeta Caco Pontes (autor, entre outros, do ótimo Sensacionalíssimo, com poemas baseados em notícias de jornais sensacionalistas, editora Kazuá, 2013), projeto multimídia que agrega diversos nomes de várias áreas e já teve várias apresentações em festivais, feiras e mostras.

Gregário por natureza, o projeto chega ao disco, recheado de parcerias e participações especiais. Disco é modo de falar, evocando o conceito de álbum: o trabalho do Baião de Spokens é lançado (também) em pendrive, mesclando diversos suportes, com a mídia permitindo ao proprietário/colecionador/usuário salvar seus próprios arquivos além do disco, livro e dvd (com a videoperformance de show gravado ao vivo no Teatro Oficina, enquanto Silvio Santos não lhe veda com suas torres e a “força da grana que ergue e destrói coisas belas”), uma sacada-trocadilho inteligente com o título do trabalho: #Opendrive.
Além de parceiros, participações especiais, linguagens e suportes, #Opendrive também é ponto de encontro de várias referências, da vanguarda paulista ao Nordeste de Luiz Gonzaga (evocado, além de musicalmente, nas xilogravuras do projeto gráfico de Daniel Minchoni), passando pela Bossa nova e pelo rap, afinal de contas, abreviatura de rhythm and poetry.
Melô do pendrive, que abre o disco com a participação especial de Sandra X (voz), dialoga com o rap e o canto-falado de Linton Kwesi Johnson. Réu, com a participação especial de Alzira E e Iara Rennó evoca Itamar Assumpção, melodicamente, no jeito em que o canto é entoado e no sample de Vinheta I (Itamar Assumpção), que abre Beleléu, leléu, eu (1980), disco de estreia do tieteense.
Sophia Lacoste evoca outra obra-prima oitentista, Clara Crocodilo (1980), citada nominalmente, e sua ficção científica. “São Paulo, 25 de abril de 2037”, começa Arrigo Barnabé, convidado especial da faixa, ao lado de Suzana Salles (Isca de Polícia), outra vanguardista paulistana-paranaense.
O nosso bem, com Alice Ruiz, é pura doçura, poemúsica escrito a quatro mãos com o anfitrião. Sinhá D’Oyá é candomblé elétrico, na melhor levada “tecnomacumba”, com a guitarra sempre em pirueta de Kiko Dinucci.
A viola caipira de Daniel Viana ponteia a introdução de Osso, com participação de Gustavo Galo (Trupe Chá de Boldo), coautor da faixa, uma equação de nossos tristes tempos sob o domínio de golpistas: “ói/ a vida aqui/ tá osso/ (…)/ muito carnê/ & pouca carne/ muito negócio/ & pouco ócio”. Gustavo Galo assina ainda, em parceria com Caco Pontes, Osso – Parte 2 (O preço do terço), faixa que se ouvirá mais à frente.
Mariposas suicidas é uma distopia (no fim das contas muito próxima de nossa realidade, como toda distopia) em que o planeta gira e pira, enquanto seres humanos “vivendo seus próprios dramas/ e a caça de insetos/ outra prestação se dando por vencida/ muriçocas temerosas zunido orelhas”.
Com João Sobral, Evoluo indo “desjustapõe” a evolução, entre encontros e despedidas, fluxos, chegadas e partidas, esta “arte do encontro” chamada vida. Firmino Chão, com Lirinha, trocadilha o nome nordestino com a firmeza sertaneja, o nordestino é “antes de tudo, um forte”, seu Euclides, seu Belchior.
Orecular, com Dani Nega, dialoga com as pistas, “poesia pra/ rimar_comer / viver_sentir / obrar_morrer/ …cantar…/ (desconstruir)/ e o que mais tiver de ser”, então, por que não?, dançar.
O Baião de mashups encerra o disco como propõe o título da faixa: remixa e liquidifica Luiz Gonzaga (Baião, parceria com Humberto Teixeira), Caetano Veloso (que cita Gonzagão em You don’t know me, do antológico Transa, de 1972) e João Gilberto (em seu baião autoral Bim bom).
Eis um ótimo exemplo de que poesia sempre pode ser bem mais.
Ouça #Opendrive: