
Ontem, ao fim da sessão de Pai e filho, quando teve início o debate com o diretor e o par de atores da peça, calei. Não era apenas o receio de antecipar algo deste texto. Era o impacto do espetáculo.
Ninguém é obrigado a participar do debate. Ao fim da apresentação, a porta é aberta, mas o exercício é interessante: Marcelo Flecha (dramaturgia e direção), Cláudio Marconcine (o pai) e Jorge Choairy (o filho) bateram um papo informal com o bom público presente à sede da Pequena Companhia de Teatro (Rua do Giz, 295, Praia Grande; lotação: 45 lugares). Mais que “gente do teatro”, são pensadores do Teatro, com T maiúsculo.
A noite de ontem foi histórica: estava presente o espectador número 10.000, após 148 apresentações de Pai e filho em 62 cidades de 22 estados brasileiros, desde 2010, quando a peça foi encenada pela primeira vez. Pode parecer pouco, mas o Teatro da Pequena Companhia de Teatro é realizado para pequenas plateias e também por isto merecem aplausos estes quixotes.
Baseada na Carta ao pai, de Franz Kafka, Pai e filho mereceu todos os prêmios que conquistou, e não foram poucos: Myriam Muniz/Funarte e Sated Maranhão, para citar apenas dois, além da participação em diversos festivais e mostras. Foi o primeiro espetáculo maranhense selecionado para o projeto Palco Giratório, do Sesc.
Volto a mim, ao fim do espetáculo. A primeira sensação foi a de tempo perdido: como pude levar tanto tempo para ver a peça?
Este texto, agora, diz tudo o que eu poderia ter dito ontem ao trio (bem como aos demais integrantes da Pequena Companhia de Teatro), mas não o fiz.
A começar pelos parabéns pela transposição da literatura ao palco. Se adaptações em si já não são fáceis pelas comparações quase sempre sem sentido – o livro é fiel à peça? A peça é melhor que o livro? Ora, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Mas a adaptação de Flecha é feliz ao transformar uma carta não enviada pelo escritor a seu pai, ou seja, um monólogo, já que, se não foi enviada, não teve resposta, em um diálogo.
Intenso diálogo, diga-se. Marconcine e Choairy agigantam-se no palco. Sua entrega é tamanha, suas máscaras estão para muito além da maquiagem. Um deles, cito de memória, revelou, em entrevista ao Balaio Cultural, programa que tenho a honra de apresentar na Rádio Timbira AM, com Gisa Franco por companheira de bancada, que na dramaturgia de Flecha não há um fio de cabelo fora do lugar.
É impressionante como isso diz bastante sobre o que vi ontem. Mais que vi: senti.
O pai é um lojista-alfaiate e o filho um escritor, “o intelectual”, como desdenha ironicamente o primeiro. Eles estão o tempo todo em movimento, quem ainda não viu não perca tempo imaginando, pensando em monotonia ou coisa que o valha, longe disso.
Não há excessos, mas em cena, Marconcine e Choairy parecem vestir não só outros corpos, mas outras vidas. Está tudo milimetricamente calculado: as vozes e trejeitos de um e de outro, a lida do pai com linhas e panos e do filho com livros e cadernos.
“Por que você tem medo de mim?”, a pergunta do pai norteia o diálogo, recheado de violência, pontuado de bom humor, não o do riso fácil e gratuito e por isto Pai e filho merece mais aplausos: a longevidade de um espetáculo que não é entretenimento puro e simples.
Os personagens travam uma conversa – ou tentativa de – em que os argumentos se anulam. O pai quer sempre ter razão, mesmo sendo incoerente, e o filho, se/quando responde, se arrepende e pede desculpas. Ou simplesmente silencia.
O poeta Roberto Piva dizia que não existe poesia experimental sem vida experimental. A julgar por esta carta levada ao palco, a própria vida de Kafka foi kafkiana, o autor já praticava a autoficção tão em voga atualmente.
Pai e filho é uma metáfora das relações familiares e sociais, uma crítica a hierarquias e a estruturas de poder convencionadas. Um convite à rebeldia – como é o próprio fazer artístico da trupe da Pequena Companhia de Teatro, a quem desejamos teimosia e merda!
Serviço
Pai e filho tem duas novas sessões hoje (4) e amanhã (5), às 19h, na sede da Pequena Companhia de Teatro (Rua do Giz, 295, Praia Grande). Os ingressos, à venda no local, meia hora antes de cada sessão, custam R$ 20,00 (meia para estudantes: R$ 10,00).
2 comentários sobre “Conflito kafkiano – e a resistência quixotesca da Pequena Companhia de Teatro”