
O 18º. Festival de Monólogos Ana Maria Rêgo, realizado na capital piauiense entre os últimos dias 8 e 14 de agosto deu alguns troféus ao Maranhão. O espetáculo O Miolo da Estória, da Companhia de Artes Santa Ignorância, voltou do Teatro 4 de Setembro, em Teresina, com os títulos de Melhor Espetáculo, Melhor Cenário, Melhor Sonoplastia e Melhor Iluminação. O primeiro para a Santa Ignorância, o último para Eliomar Cardoso e Júlio César da Hora, o Jarrão, e os outros dois para Lauande Aires (fotos), que atua e assina direção e roteiro da peça.
A ideia de O Miolo da Estória já conta dez anos. Seu autor relembra: “Em 29 de junho de 2001, enquanto participávamos da tradicional boiada no largo de São Pedro, onde dezenas de grupos de bumba meu boi brincavam em homenagem ao santo, em meio à multidão que dançava, batucava, rezava e bebia, vimos a chegada de um novo boi, sotaque da baixada, e uma cena impressionante: o miolo do boi subia de joelhos os 47 degraus da igreja com seu boizinho nas costas. Subia lentamente num choro incontrolável, até chegar aos pés do santo no interior da igreja. Desde então ficamos a questionar: quem é esse anônimo que faz o boi?, qual a sua história, seu sonho, sua vida?, que dívida com o santo ele esteve a pagar naquela boiada?”
Lauande Aires desenvolveu a ideia com base no trabalho de importantes pesquisadores da cultura popular do Maranhão: Américo Azevedo Neto, José de Ribamar Reis, Maria do Socorro Araújo, Maria Michol Pinho de Carvalho e Regina Prado, entre outrros.
O Miolo da Estória, em seus cerca de 50 minutos de duração, conta a história de João Miolo, operário da construção civil e brincante de bumba meu boi – como “miolo” designa-se o homem que dança debaixo do boi, dando-lhe vida e movimento –, homem comum, de vida comum, como a de tantos outros operários, incluindo casa humilde, vida sofrida, pouco dinheiro no bolso e muita solidão. O solo teatral retrata o desejo de João Miolo vir a ser o cantador do grupamento em que brinca – entre o sacro e o profano – e ocupar uma posição de destaque na vida, retratando o homem em conflito com a fé e as relações sociais.
Jarrão comenta a premiação: “É importante porque nos faz acreditar ainda mais que nosso trabalho tem valor, afinal com a parceria do Eliomar Cardoso, que também divide o reconhecimento, alimenta nosso trabalho, faz crescer a importância do iluminador nos espetáculos”. E cobra reconhecimento ao teatro feito no Maranhão: “Tá na hora do reconhecimento local, afinal em Teresina tem festivais, mostras e encontros teatrais o ano inteiro”.
Sobre O Miolo da Estória e seu êxito no Piauí, Vias de Fato conversou, por e-mail, com o dramaturgo Lauande Aires.
ENTREVISTA: LAUANDE AIRES
POR ZEMA RIBEIRO

Vias de Fato– Qual a importância desta premiação para o teatro maranhense e, particularmente, para você como a(u)tor? Lauande Aires – Há alguns anos sinto-me incomodado com certo sentimento de plateia em nossos produtores teatrais. É um sentimento de inferioridade, conformismo, desses que tentam nos fazer crer na impossibilidade de produzir um teatro à altura do cenário nacional. Premiações desta natureza, assim como premiações em editais públicos, colocam o Maranhão no circuito dos que fazem teatro e não apenas dos que recebem espetáculos em suas parcas programações. Como ator, autor e encenador sinto-me profundamente lisonjeado, pois ao enviar um material para ser analisado por uma curadoria, a nossa torcida é simplesmente em enquadrar o nosso trabalho na programação para ter a oportunidade de circular com os espetáculos, visto que no Maranhão é impossível a realização de temporadas devido a cobrança de pauta fechada ao mesmo nível das super produções.
A que você credita o fato dos vizinhos Maranhão e Piauí conhecerem tão pouco um do outro, seja no teatro, na literatura e/ou música contemporâneos, seja em quaisquer outras expressões artísticas? À falta de um movimento cultural articulado e à nossa dependência do sul e sudeste como referencial estético. Isso tem ficado muito claro na realização de nossos eventos de teatro. Poucas vezes conseguimos dialogar com os grupos do nordeste e abrir as portas para um intercâmbio.
O Miolo da Estória volta de Teresina com vários prêmios na bagagem, mas ainda encontra dificuldades para ser encenado no Maranhão. A seu ver, onde está o problema? Há seis anos retomamos o processo de Festival Nacional de Teatro, que é imprescindível para a evolução de nosso desenvolvimento estético-político. No entanto as mostras e festivais não configuram por si um projeto de teatro para o estado ou município. Nossa arte necessita de tempo, espaço e estrutura, muito mais que o dinheiro em si. Precisamos de tempo para criar, espaços para ensaiar e apresentar e estrutura física e humana para que isso possa chegar à plateia com a maior qualidade possível. Mas como conseguir produzir com qualidade sem espaços para salas de criação e montagem? Como produzir com qualidade se você apresenta seus espetáculos em programações oficiais a preços risíveis e tem de aguardar um ano ou mais para receber? – quando recebe! Como melhorar o meu espetáculo, agora premiado, se ele requer uma estrutura técnica que eu não tenho condições de custear devido ao alto preço das pautas em teatros públicos?
Em entrevista recente ao jornal O Estado do Maranhão o artista plástico Cordeiro anunciou mudança em definitivo do Maranhão. Ele parte para o Rio de Janeiro, refazendo um êxodo artístico do qual, parecia, nos livrávamos aos poucos. A seu ver “santo de casa não faz milagre”? Ainda não. Mas a meu ver a necessidade de mudança ocorre também pela necessidade de enfrentar novos desafios, de ampliar suas impressões de mundo e vencer o medo que temos de mudança. Podemos lembrar daquele soldado covarde e medroso que fora obrigado a participar de uma batalha: vai que ele dá a sorte de não morrer? Voltará como herói para os braços do seu povo!
O Maranhão tem um dos mais antigos e belos teatros brasileiros, o Arthur Azevedo, cuja pauta é quase que exclusivamente dedicada a shows musicais, espetáculos de humor de qualidade duvidosa e peças teatrais com medalhões televisivos, salvo raras exceções. Falta uma política efetiva de incentivo ao teatro local? Com certeza. Especialmente o formato de cobrança de pauta que nivela a produção local a qualquer projeto patrocinado nacional. Mas temos que entender que nem sempre os nossos espetáculos precisam ser produzidos para o Arthur Azevedo. Tenho visto muitos colegas insistirem nesse erro e realizarem apenas uma ou duas apresentações. O espetáculo entra para a história dos que não fizeram história, entende? Sei que o Teatro Arthur Azevedo é o único capaz de nos oferecer um arsenal técnico e que em determinados momentos devemos recorrer à sua estrutura. Eu mesmo já fiz isso com a Santa Ignorância, com a montagem do musical infantil O Cavalo Transparente. Mas o que não pode ocorrer é a vaidade de pisar no Arthur Azevedo e ocupar um teatro daquela estrutura sem ter condições de pôr mais de dez pessoas na plateia.
[Vias de Fato, agosto/2011]
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